sábado, 28 de fevereiro de 2009

learnin' the blues

É tarde. A luz do luar entra pela clarabóia do sotão e ilumina um cenário triste mas, ainda assim, familiar, de abandono. As mesas estão vazias, a pista de dança deserta e o gira-discos vai perdendo a corda. A música abranda, morre aos bocadinhos, até se apagar de vez. No outro canto da sala, uma rapariga magra, de aspecto cansado, prende o cabelo no alto da cabeça, respira fundo e desliga a luz de presença sobre o bar, arrumando de seguida os últimos copos esquecidos no balcão de mármore negra: grandes e pequenos, alguns ainda com pedras de gelo por derreter, outros com a marca de batom vermelho nas bordas...
Depois, dirige-se ao gira-discos. É tarde, toda a cidade dorme. Menos ela. Abrindo a porta inferior do móvel e agachando-se ao seu nível, vasculha entre as prateleiras revestidas de pó. Retira o mesmo disco de sempre, aquele que durante muitos meses lhe servira de música de embalar e coloca-o sobre o prato do aparelho, liga-o e posiciona a agulha. A música começa - uma melodia calma, dormente, intemporal, que se eleva na atmosfera e devora aqueles minutos da sua existência. Ela sabe que a música é longa, muito mais que o habitual naquele tipo de discos e que, assim, ainda tem tempo para um ou dois cigarros, que consome, lentamente, encostada à parede. Levanta-se e sussurra: "Play it, Sam. Play As Times Goes By", mas não há pianista nem piano que lhe respondam. Ri-se da sua própria estupidez. E então, num ímpeto de coragem, a rapariga sobe para a pista e preenche o vazio que, até então, aí existia.
É um bailado da saudade, por certo, uma pessoa a dançar pela presença, ou melhor, pela ausência, de duas. São rodopios, saltos, piruetas. São braços a abraçar um vazio que a embala a ela. É vida, mas não é liberdade. Porque nada prova mais a vida que a dança: pelo movimento, pelos corpos, pela música, os pés a roçar no chão, a respiração ofegante, a emoção, a energia. Mas também a dança é antítese de liberdade, pois é a dança que nos mostra a prisão do nosso corpo: não podemos voar, morrer e ressuscitar de seguida, ou mergulhar no caos... e, contudo, é na dança que se espelha o vigor e vontade de ultrapassar limites do homem que, embora não o sendo, se sente, por fim, realmente livre.
E é assim, neste novelo de corpo, som e entrega, que a rapariga se perde nas luzes da cidade que dorme e cai por terra, numa espécie de febre sonolenta de droga. Morre, num bailado da saudade; morre ela mas não morre a saudade. Apenas adormece.
Amanhece.

1 comentário:

L disse...

Olha quem fala, este texto esta lindo barbara:)