sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

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Coimbra, 23 de Janeiro de 2009
Querida Alice desse lado do espelho,
Nunca o tempo passou tão depressa, aqui deste lado. Ultimamente pode parecer que me tenho esquecido um bocado de ti, mas escrevo-te todos os dias. Só não tenho coragem de selar e enviar as cartas, porque tenho medo que já não me percebas. Às vezes a distância em tempo é pior que a distância em quilómetros e, se com essa eu já aprendi a lidar, tenho medo de ser arrebatada pelas saudades da outra, daquilo que fui e que já só tu possuis. Sabes, Alice, tenho acordado assustada a meio da noite. Já não me lembro de mim, embora ainda saiba bem quem és, embora ainda saiba que és tu quem guarda tudo o que eu fui nestes últimos dezasseis anos. Tenho acordado assustada a meio da noite e não é por causa de nenhum monstro ou do escuro, mas sim porque, às vezes, não percebo mesmo quem sou, ou o que ando aqui a fazer. Pode alguém ser quem não é?
Não entro no País das Maravilhas há muito tempo mas tenho passado todas as minhas noites, até adormecer, sentada num banco de jardim com tanto para contar, a olhar para a toca do coelho que dá entrada nesse nosso mundo. Talvez seja por ter crescido de mais, e já não conseguir passar pelo buraquinho da fechadura. As flores também deixaram de falar comigo e já ninguém me conta histórias como o Tuidledim e o Tuidledum faziam. Também deixei de ter medo da Rainha de Copas: aqui, deste lado, há muitas rainhas piores e bem mais reais, e é com essas que eu tenho que me preocupar.
A verdade é que nunca corri com tanta força atrás do Coelho Branco. Não imaginas o quanto eu queria conseguir agarrá-lo pelas orelhas e arrancar-lhe o relógio das mãos, para o atirar com toda a força para o chão, esperando que se partisse e que o tempo parasse de vez. Assim podia não crescer mais e, quem sabe, ir recuando, sem ninguém ver, até aquela altura em que tudo era tão mais fácil. Não é que não goste disto, deste lado, agora. É mais real. Ao menos aqui, na maior parte das vezes, sei com quem contar, e cresço, e sou, e vivo. Sim, é mais real, mas não mais fácil. Enquanto aí tanto fazia ir por um ou pelo outro lado da bifurcação que nunca saía do meu País das Maravilhas, aqui as escolhas são reais. E duras, sim, duras. Aqui é impossível adormecer no chão, porque é frio e duro. E também já não conseguimos conversar com as estrelas, à noite. Se cometemos algum erro, não o podemos apagar nem agir como se ele não existisse. Alice, eu tenho cometido muitos erros.
(...) Num momento posso estar cheia de energia, de fantasia, de sonhos e no segundo seguinte posso estar a gritar lágrimas e a afogar-me nelas. Lembraste, Alice, quando choraste tanto que ias morrendo afogada? Eu sou assim todos os dias.
E têm sido assim, os últimos tempos. Agora pedem-me para me colocar na posição dos outros e sentir as coisas como eles sentiriam, pois talvez assim, dizem eles, encontre as respostas que procuro. Mas Alice, tu sabes tão bem como eu que é impossível fazer isso. Ninguém me consegue tirar nenhuma ideia da cabeça, nem eu própria, são sempre as ideias que acabam por se ir embora. Eu continuo à espera, entre rodopios e saltinhos, é verdade, mas há alturas em que me faz bem alimentar todos estes planos efémeros por mais uns segundos, mais uns abraços que seja.
Não esqueças. Nunca.
Tua Alice deste lado do espelho.

1 comentário:

Anónimo disse...

gostei sim