domingo, 21 de março de 2010

o inverno do meu descontentamento

Este foi o Inverno do meu descontentamento. Começou cedo. Logo em Outubro, as primeiras vagas de frio, um vento cortante que… Procurei primeiro aninhar-me onde ainda houvesse calor mas depressa tudo congelou; primeiro, à minha volta; depois, a pouco e pouco, dentro de mim: sentimentos, esperanças, sonhos. As primeiras chuvas fizeram o favor de varrer para longe as emoções mais persistentes. Gelada, encharcada, atacada pelas pedras de granizo, procurei cada vez mais e mais um cantinho, só meu, onde pudesse estar protegida de tudo isso. Acabei por encontrar um sítio – mas era demasiado pequeno para toda a minha bagagem de projectos e tesouros, demasiado pequeno para mim até, pelo que alguma coisa tinha que ficar de fora. Tentei não me perder. Ainda sei quem sou. Guardei comigo o que de mais meu tinha. Apenas dobrei os planos a longo prazo até caberem num bolso, amontoei-os e arrumei-os a um canto. Fui tirando bocadinhos e bocadinhos de mim até caber por completo nesse meu nicho.
Não vou dizer que na altura não tenha dado conta do que estava a fazer. Tinha consciência, sempre tive. Muitas vezes tive medo de mim própria: o desejo de controlar tudo, a eficácia irrepreensível com que levei a minha vida dentro daquele buraco, a concentração de todo o meu mundo num espaço demasiado pequeno para deixar entrar o que quer que fosse de novo, a força com que serrava os olhos e fingia um sorriso onde encenava e, por vezes, chegava mesmo a viver algum entusiasmo e vontade de continuar. Ao mesmo tempo, vi com toda a clareza que me estava a despersonalizar, impelida por alguma força que ainda agora não sei definir. Não consegui lutar comigo própria e por isso rendi-me ao meu eu mais forte. Foi para não sentir as perdas que me fui deixando entrar num estado de letargia, de dormência, entregar-me à inépcia, pôr a minha vida em stand-by... Se não pensasse, não me apercebia dos bocados que me iam faltando. No final, todos as trincas que tinha dado a mim própria, desfiguraram-me de tal forma que me tornei quase irreconhecível. Como é possível que me tenha perdido tanto, se toda eu me escondi numa caverna com pouco mais de cinco palmos de terra e não tinha para onde fugir? Não é possível que tenha ido muito longe, em três meses. Ainda sei quem sou, fora deste sarcófago de gelo onde me fui encerrar.
Hoje, com os primeiros sóis de Primavera, o Inverno do meu descontentamento acabou e espero - quero, sei, sinto que já estou a conseguir até - encontrar-me de novo. Hoje, com os primeiros sóis de Primavera, algo em mim se sentiu impelido a começar a derreter e ocupar os espaços vazios em mim. Hoje, com os primeiros sóis de Primavera, ponho um ponto final à minha vida sem mim, ou o meu eu sem vida, tanto faz.
"Now is the winter of our discontent made glorious summer by this sun of York."
William Shakespeare's Richard III