quinta-feira, 20 de agosto de 2009

se me vires por aí

Não tenho muito tempo. Onde é que te meteste? Acabo de chegar e daqui a dez minutos volto a sair. Só aqui vim para ter a certeza que não decidiste voltar para casa, só o tempo suficiente para comer um pacote de bolachas, passar a cara por água e agarrar num casaco quente. Hoje vou passar a noite na rua, decidi procurar-te pelos parques e jardins, porque já percorri as avenidas mais movimentadas e tenho quase a certeza que não estás lá. Tinha esperança que tivesses voltado para casa. Deixei as janelas abertas e a porta destrancada o dia todo, mas não voltaste. Como foste capaz? Desde manhã que ando numa desorientação total. Como é que achas que uma pessoa se sente ao olhar para o espelho ao acordar e não ver lá nada, nem a cara de todos os dias, nem um monstro desfigurado, nem um estranho, nem uma sombra, nada. Nada a não ser mãos, umas mãos secas, pálidas e ossudas, a esfregar uma cabeça invisível, a acariciar madeixas de cabelo inexistentes. Que é feito de mim? Gostava de saber para onde me levaste, de to perguntar pelo menos, num tête-à-tête surreal: reflexo do meu corpo no meu corpo vazio. Ias olhar para mim com os meus olhos, sorrir-me com o meu sorriso e voltar a entrar em mim, sem nenhuma justificação, mas aí também eu já não me importaria, desde que voltasse a ter reflexo nos espelhos, nas montras, nos carros acabados de lavar. Percebes agora que só quero que voltes? É tão difícil ser só corpo, só agir, só viver. Se sou aquilo que faço, preciso de me ver para saber quem sou, preciso de me reconhecer para ser o meu caminho. E segui-lo. Raio de dia aquele em que os meus pais me puseram a ver o filme do Peter Pan, agora também te achas uma sombra independente? Vá lá, volta. Preciso de mim e acho que estou perdida. Acho que levaste contigo todos os meus sentidos, todo o pó de estrelas de que sou feita e que estava alojado nesse ti de mim. Por favor. Se me vires por aí, à tua procura, não hesites. Ser só corpo é um peso impossível. Ser só corpo dá cabo de mim. Faltas-me. Falto-me.

3 comentários:

A Coração disse...

Não és só corpo... és alma. Talvez a alma esteja só anestesiada e não a sintas. Procura-a dentro de ti e deixarás de te sentir só corpo.

Anónimo disse...

"agora também te achas uma sombra independente?"


como se alguem gostasse de ser chamado de sombra.

Anónimo disse...

ela está-se a chamar sombra a ela própria, provavelmente o primeiro anónimo não percebeu o texto sequer :)