terça-feira, 28 de julho de 2009

nesse sítio

Hoje saio de casa e não trago quaisquer truques, quaisquer armas, quaisquer engodos. Coloco apenas a armadura, mas nem sei se me vai servir de alguma coisa. No sítio para onde eu vou, as armas não têm consistência e as balas rasgam o ar como memórias, sem ligar às barreiras entre o passado e o presente. No sítio para onde eu vou, jazem todas as coisas que perdemos pelo caminho entre as chamas e nenhuma pintura de guerra intimida ninguém. No sítio para onde eu vou, tudo é cru, e até a imagem de ti sentada no chão como antigamente parece mal-passada; continuas a trazer o mesmo ar de quem acordou com a cabeça para os pés da cama, o mesmo aspecto de quem parece que não se esforça nada, os mesmos esgares de sorriso e os silêncios mais inconvenientes. Tu estás lá, no sítio para onde eu vou, e de repente percebo que nem sequer valia a pena ter trazido a armadura. As tuas armas são as que melhor me sabem magoar, porque desconhecem as feridas abertas mas sabem de cor como atingir as mal saradas. Palavras, olhares, sobretudo silêncios. Palavras que esbarram contra a armadura, mas cujo eco ressoa mais que qualquer guincho agudo já lançado. Olhares que desafiam, focam, mordem, fintam as nossas resistências. Silêncios que trespassam a armadura, doce e subtilmente, e que acabam por nos trespassar também a nós, sem dó nem piedade.
No sítio para onde eu vou, estás tu, e estás alegremente igual a sempre. Contudo, reconheço em ti pouca coisa de nós, e é por isso que me faltam tanto as palavras. À falta de familiaridade, resta-nos apenas a hipótese de fingir. Ponho a armadura de lado, tem-me tapado tanto nestes últimos tempos que te pareço mudada - se calhar até o estou - e ponho as cartas todas na mesa. Acho que ambas fazemos um bocado de batota. Podemos sentar-nos a tarde inteira a lembrar a vida que tivemos ou ficar a olhar o vazio em silêncio. Podemos fingir, principalmente, que não me fazes falta.

2 comentários:

Ana disse...

tenho um blog novo :O

A Coração disse...

"À falta de familiaridade, resta-nos apenas a hipótese de fingir."


Gostei muito. Está muito, muito bonito este texto.