quarta-feira, 24 de junho de 2009

a noite passada

A noite passada acordei com o teu beijo: descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo. Vinhas numa barca que não vi passar, corri pela margem até à beira do mar. Até que te vi, num castelo de areia: cantavas "sou gaivota e fui sereia". Ri-me de ti, "então porque não voas?" E então tu olhaste, depois sorriste, abriste a janela e voaste. A noite passada fui passear no mar. A viola irmã cuidou de me arrastar. Chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo, olhei para baixo dormias lá no fundo. Faltou-me o pé, senti que me afundava, por entre as algas o teu cabelo boiava. A lua cheia escureceu nas águas, e então falámos e então dissemos, aqui vivemos muitos anos. A noite passada um paredão ruiu. Pela fresta aberta o meu peito fugiu. Estavas do outro lado a tricotar janelas, vias-me em segredo ao debruçar-te nelas. Cheguei-me a ti, disse baixinho "olá", toquei-te no ombro e a marca ficou lá. O sol inteiro caiu entre os montes, e então olhaste, depois sorriste, disse "ainda bem que voltaste."

Sérgio Godinho

Sem comentários: